segunda-feira, 13 de junho de 2011

Ulisses e as sereias digitais: apetrechos e conteúdos de informação

http://lexias.tumblr.com/    (na web)

Em 1906, enquanto terminava seu livro “Dublinenses”, James Joyce
considerou adicionar outro conto, sobre um negociante de anúncios
chamado Leopold Bloom com o título Ulisses.  A história foi completada
em outubro de 1921. A ação do livro, que se desenrola em um único dia,
16 de junho de 1904, e  situa os personagens da Odisséia de Homero na
Dublin moderna e representa Ulisses, Penélope e Telêmaco em
personagens irlandeses:  Leopold Bloom, sua esposa Molly Bloom e
Stephen Dedalus, cujos caracteres contrastam com seus  modelos
Ulissianos. O livro explora diversos círculos da vida dublinense. O
Bloomsday  é um feriado comemorado em 16 de junho na Irlanda com uma
caminhada em homenagem a narrativa dublinesca que segue pelas ruas
descritas no livro. É um feriado nacional dedicado a um livro impresso
com papel e tinta.


Assim, a data de 16 junho tem sido um ícone da narrativa papel que no
em seu esplendor festeja, também, Gutenberg que facilitou a criação da
base física para a leitura impressa. Nesta atualidade este dia traz a
baila a reiterada discussão sobre o futuro do livro e seu possível
acabamento. Considero, esta uma discussão sem sentido, pois no final
das contas estão discutindo o final ou a permanência de um formato
físico, uma base de inscrição da informação. Esquecem que conteúdo das
narrativas desta base física não irá desaparecer nunca, apesar de,
potencialmente, ir para uma estrutura de suporte digital. Isto é o
livro não irá acabar só irá para outro formato.

As pessoas se afeiçoam com muita emoção aos seus apetrechos de
manuseio da informação que usam como sendo sua memória de plantão.
Mas, o que importa é aquilo que está contido neles e que maneja nosso
imaginário construindo e reconstruído nossas imagens. Contudo, “para o
cérebro não existe diferença entre a realidade e a imaginação ”: se
acredito firmemente que o “meio é a mensagem” está formada a confusão.
O valor do dispositivo se confunde com o valor do conteúdo nele
contido. Esta distinção entre meio e conteúdo fica mais difícil quando
o “gadget” é interativo e permite uma conversação.

“Enquanto suporte material da comunicação, o meio tende a ser definido
como transparente, inócuo, incapaz de determinar positivamente os
conteúdos comunicativos que veicula A sua única incidência no processo
comunicativo seria negativa, causa possível de ruído ou obstrução na
veiculação da mensagem.” (1)

Ítalo Calvino reflete os conteúdos e apresenta cinco proposições para
a qualidade das narrativas no milênio em que ora estamos: a leveza, a
rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade dos textos; a
sexta sugestão, não escrita, seria a consistência. Calvino parece
antever com suas colocações a direção futura da escrita e a leitura
digital, pois todas as propostas estão muito direcionadas para textos
em um formato digital, embora não tenha sido esta a intenção explícita
do autor. (2)

Uma preocupação que percorre todo o texto de Calvino é a imagem da
representação da informação e da sua interiorização. A mensagem como
um cristal tem nas suas facetas uma clara precisão e capacidade ao
refratar a luz; é a representação da invariância. A constância das
estruturas lapidadas. Mas o reflexo pode se transformar em chama
quando refratado no sujeito que somos provocando na reflexão
incessante agitação interna, manipulando sensibilidade e percepção no
trato do conteúdo recebido.

A mensagem, então, precisa ser leve como o pássaro, mas não como a
pluma que cai. Esta leveza associa no traço visível a coisa invisível
e ausentada, com poder de ser metaforicamente ampliada pela
intercessão de narrativas em convivência. Fatos e ideias tinham um
percurso formal bem definido dentro de um sistema de geração e uso da
escrita em papel. Mas, uma escritura digital tem o seu modo
simplificado e múltiplas revelações o que subvertem a estrutura da
escrita em rapidez, visibilidade e multiplicidade. A velocidade do
meio de transferência impõe à mensagem uma economia de palavras,
precisa na exatidão de significados.

Quem não entende que a velocidade é uma força da informação digital
arrisca não ver a emergência da mudança no formato dos documentos. Há
na simultaneidade do “aqui-e-agora” uma negação do tempo sequencial. É
uma a busca de interioridade para um tempo místico, um tempo de
celebração de todos os tempos. Um tempo em que há sempre opções de
enunciados para cada colocação de um discurso. A reflexão individual
está ampliada pelas facilidades de acesso às memórias eletrônicas e o
receptor não aceita mais percorrer os caminhos mapeados por universos
formatados de uma ideologia sequencial da escrita. As comemorações de
papel e tinta, em 16 junho, se associam a um rememorar das coisas
idas.

Porem, a rapidez do tempo de produção, acesso e transferência da
informação nada tem a ver com o tempo de reflexão para sua criação ou
para interiorização. Os procedimentos para criar ou interiorizar um
conteúdo se realizam no tempo próprio de cada indivíduo, um tempo
proprietário para pensar a mensagem. Este tempo em nada se relaciona
com a velocidade do tempo online para acesso e transferência de
arquivos digitais.

Esta é a realidade que a rede anuncia e configura: “Se a previsão do
final do livro impresso já provoca no leitor tradicional mais que
estranheza, uma recusa, o que dizer do escritor que vê nesta vertigem
uma espécie de atentado ao objetivo e a natureza de seu trabalho?

Mas ao que parece o rumo esta definido e a sorte do papel e da tinta
está lançada. Não haverá argumentos que consigam desviar este penoso
destino, nem clarividente ou profeta que possa prevenir sua
sobrevivência. O funeral já está em marcha e de nada vale que nós, que
conservamos nossa fidelidade às folhas impressas protestemos e nos
enraiveçamos em meio a desesperança.” [3]. Este junho em Dublin haverá
uma despedida respeitosa:

“Que os aviões circulem no céu a tristeza
Escrevendo a mensagem “Ele  Morreu”
Coloquem fumos de crepe na gargantilha dos pombos de rua
Façam que todos os guardas de trânsito usem luvas de algodão preto

Ele foi meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste
Meus dias de semana e meu descanso semanal
Meu meio-dia e a meia-noite, minha fala e minha canção
Eu pensei que este amor fosse para sempre: mas eu estava errado” [4]

Aldo de A Barreto

Notas:

1- O meio é a mensagem por Olga Bombo
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/cadernos/mcluhan/estudo_mcl_olga.pdf

2 - "Seis propostas para o próximo milênio"
http://www.dgz.org.br/dez99/Art_03.htm

3- Henrique Vilas- Matas, Dublinescas, Cosac Naify 2011

4 - W.H. Auden, Poem [fragmento]

5 – Combatendo idéias irracionais
   http://www.editoraferreira.com.br/publique/media/nanci25.pdf

6 – Esta postagem trata da “despedida” do papel e da tinta como
elementos para edição de conteúdos sombólicos e consequentemente dos
apetrechos que deles dependem para disseminar narrativas.

--
As Lexias são unidades de leituras  indicadas como sendo os locais do texto em que as palavras entram em terremotos de significação ou como un dos  envelopes de volume semântico da narrativa, uma voz do texto tutor, a linha saliente de um texto plural.