terça-feira, 10 de janeiro de 2012

CENTENÁRIO DE MEU AVÔ (MANOEL LIMA) NO JORNAL DA BESTA FUBANA

Leiam agora, no JORNAL DA BESTA FUBANA


 
CENTENÁRIO DE MANOEL BARBOSA LIMA, MEU “AVÔHAI”
Manoel Lima

Zé Ramalho assegura que compôs a canção “Avôhai” em homenagem ao seu avô, responsável por sua criação desde os dois anos de idade, quando perdeu o pai, boêmio e seresteiro, que morrera afogado num açude. O velho José Ramalho foi então, a partir daí, avô e pai para o pequeno órfão, pois a mãe entrara em depressão devido a morte do marido. Felizmente eu não precisei perder meu pai biológico para ter uma relação semelhante com meu avô paterno, Manoel Barbosa Lima, nascido aos 14 de janeiro de 1912 na fazenda Campo Grande, no município cearense de Quixeramobim. Se vivo fosse, meu velho estaria completando um centenário.


Mesmo querendo fugir dos clichês é inevitável dizer que foi um modelo de homem simples, trabalhador, extremamente honesto e correto em seus negócios. Quando me entendi por gente ele tinha um próspero comércio – uma bodega sertaneja – com balança de pratos e fiteiro no balcão, onde vendia gêneros alimentícios, bebidas, tecidos, papelaria e miudezas em geral. Naquele tempo distante, início da década de 1970, o vi acordar algumas vezes no meio da noite para vender um pedaço de pano para fazer mortalha para um “anjinho”, pois naquele tempo a mortalidade infantil era aterradora. De cada dez crianças nascidas, duas ou três não chegavam a completar o primeiro mês de vida.
Trabalhador incansável desde a infância, Manoel Lima ficou órfão na adolescência, primeiro de mãe (que morreu de parto de um de seus muitos irmãos) e depois de pai, que morreu de um ataque cardíaco fulminante aos cinqüenta anos de idade. O irmão mais velho já era casado. Coube a ele, com apenas 14 anos, a guarda e o sustento das irmãs e de seus manos menores (Paulo, Antônio, Raimundo, Sebastião e outros que não lembro o nome). Empregou-se na construção de açudes, mas uma febre terrível quase lhe ceifa a vida antes de completar 20 anos. Uma irmã fez promessa para que ele sobrevivesse, oferecendo a sua própria vida em troca da dele, que era pés, braços e arrimo de família. Essa moça realmente morreu na flor da idade e na mesma semana em que ela expirou ele levantou-se do seu leito depois de quase um mês alheio do mundo. Todas as vezes que íamos a Canindé ou Quixeramobim, meu avô passava na sacristia da paróquia e encomendava missas para os seus pais e para os irmãos já falecidos, em especial para essa jovem que numa prova extrema de amor fizera a tal promessa para salvar a sua vida.

Admirador da cantoria e das canções de Luiz Gonzaga – que também fará centenário este ano – vovô era meio desentoado. Gostava de cantarolar umas coisas – velhas quadrinhas que aprendera na infância – num tom quase inaudível. Tinha pudor de soltar a voz, pois sabia que o canto não era o seu forte. Já meu pai, Evaldo de Sousa Lima, cantava bem e gostava de decorar romances de cordel, cantigas de Jackson do Pandeiro e canções de viola para solfejá-las na labuta diária, ora botando água em lombo de jumentos, ora cuidando do gado de leite e também de um roçado, pois até 1980 viveu unicamente da agricultura, até se estabelecer em Canindé e dedicar-se ao comércio.
Já próximo de completar 25 anos de idade, Manoel ainda não procurara uma companheira pois ainda não se libertara da tarefa de criar e educar os irmãos menores. Mas um dia, indo a uma missa em São José da Macaóca, acompanhou um grupo de moças onde destacava-se uma pela alvura de sua pele, pelo azul cristalino dos olhos e pelos cabelos castanhos, quase alourados. Era moça fina, filha de pais arranjados, pertencente a uma classe social mais elevada que a sua. Ora, ele pobre órfão que era, possuía de seu apenas um cavalinho de sela, artefato este já bem surrado, que serviu de chacota para os irmãos de sua pretendida. Além do mais a moça já estudara na cidade e ele, ainda analfabeto, não tivera tempo nem oportunidade de estudar… Quando foi visitá-la pela primeira vez, não quis retirar o coxim de cima da sela justamente para não expor seu estado lastimável. Os futuros cunhados, por maldade, foram lá e pediram o tal coxim para guardar, sem disfarçar o riso de mofa em seus rostos.

Mas Manoel era homem sobrando e não se deixava abater ante as dificuldades que apareciam. Aprendera, desde muito cedo, que a vida é dura para quem é mole. Levou o namoro adiante, mesmo com a desaprovação dos cunhados que exerciam forte influência sobre o pai da moça. Alzira de Sousa Viana, sua eleita, também se encantara pelo rapaz, que apesar de pobre e analfabeto, era bonito, trabalhador e tinha modos cavalheiros (quando queria, era um verdadeiro “gentleman”, mas quando estava afobado, parecia uma abelha assanhada).

Resolveu pedir a moça em casamento e diante da sua franqueza o velho Fitico (Francisco de Assis de Sousa), pai de Alzira, ficou acanhado em negar a sua mão. Disse que faria o casamento. Assim que meu avô deu as costas, os irmãos da moça caíram em cima do velho reprovando o seu ato e dizendo que a irmã jamais casaria com aquele rapaz. Pressionado, o velho Fitico fez uma carta para o rapaz e mandou um portador alcançá-lo antes mesmo de chegar à casa de seu tio e padrinho Bené Barbosa, também um homem de alguma posse e muito brio, diga-se de passagem. O velho Bené leu a carta e ficou indignado com a atitude covarde dos familiares da moça. Disse ao sobrinho e afilhado que a esquecesse e procurasse outra jovem para casar. Manoel ouviu tudo calado e, secretamente, mandou perguntar a moça se ela concordaria em fugir. Dito e feito! Não deu outra… Numa noite de lua clara apareceu no oitão da velha casa da fazenda Castro e raptou sua amada. Antes havia combinado com um primo da mesma, o fazendeiro Raimundo Chagas, de deixá-la em sua guarda enquanto corria a papelada do casamento. Raimundo Chagas, homem rico da Várzea Grande, já casado e pai de família, foi a partir daquela data um dos grandes amigos de meu avô.

E casaram mesmo, na matriz de Canindé, aí pelos idos de 1937. Em 1938 nasceu o José Oswaldo, o filho primogênito e depois dele mais dez. Ao todo, nove se criaram e dois faleceram ainda crianças. Alzira fora deserdada pela família (dona de muito gado e terras) e não possuía sequer uma vaca para dar leite aos filhos. Seu gado fora confiscado, em represália a sua fuga. Meu avô não gostava de relembrar essa história e até reclamava com minha avó quando ela fazia qualquer referência a esse período de suas vidas. Fazia isso para não magoar os familiares dela e também para não manchar a memória de seu pai, de quem se tornou amigo. Uma de suas raras vaidades, se é que isso pode ser considerado “vaidade”, era dizer que o pouco que possuía ganhara trabalhando, à custa de muito esforço e suor.